terça-feira, 8 de abril de 2014

Descasos do dia a dia



Depois das notícias que marcaram a mídia nos últimos dias e as manifestações femininas — e até masculinas — transluzindo a revolta contra as opiniões que alegavam que mulher com roupa curta merece ser estuprada e as que sofrem violência doméstica e não denunciam é porque gostam de apanhar, recordei dos grandes protestos que aconteceram em junho de 2013: o aumento dos vinte centavos na passagem dos transportes públicos despertou a consciência do povo brasileiro para os demais absurdos e descasos com a saúde e educação do país. As mais diversas cidades aderiram à causa e saíram em manifestação, cheia de orgulho, nas afirmativas de que o Gigante havia acordado. E agora, dormiu outra vez?

O que outrora me fazia brilhar os olhos e sentir admiração por esse povo cheio de coragem e determinado a transformar o que lhe fosse possível e, pela bravura, até impossível, hoje me faz apenas lamentar — porque tudo não passou do calor do momento. Quando a situação complica e por alguns dias os desastres saem do esconderijo, é hora de se entrar em ação; isso parece natural, mas enxergo como um sinal terrível: é somente nesse tempo de exteriorizar as insatisfações que as pessoas atentam à realidade. Os dias anteriores e os que sucedem depois que as hashtags inspiradoras desaparecem das redes são absolutamente normais e tudo está (omitidamente) bem.

No ano passado, o alarde se referiu ao problema citado nos parágrafos anteriores: serviços públicos oferecidos com o mínimo de qualidade à população. Findaram-se os protestos e igual continuou a vida. Já no ano em que nos encontramos, a vez é dos estupros. Foram as afirmações "mulher com roupa curta merece ser estuprada" e "mulher que apanha do marido e não denuncia é porque gosta" que repercutiram em todo o país e impulsionaram as mulheres das mais variadas idades a pousarem para fotos seminuas e acompanhadas de um cartaz com o dito: Eu Não Mereço Ser Estuprada.

De início, a nova campanha na Internet me despertou uma euforia repentina de ver a reação das pessoas contra essa forma de pensamento opressor. Foi, entretanto, questão de um dia para que minha mente inquieta me fizesse pesquisar e organizar as ideias sobre o que acontece — e mais uma vez a gente fica sem se dar conta.

A verdade é que, assim como a gente finge não enxergar aquela escola pública que não funciona e aquele hospital em condições precárias de higiene básica e sem leitos de UTI, despercebe também as músicas que denigrem a imagem da mulher. E muitas são as que escutam. E dançam no ritmo. E se deixam levar como, de fato, aquele objeto sexual que diz a letra. O costume é seguir modismos e fazer rebelião quando alguma atrocidade invade a tela da TV. Mas a gente — seja mulher ou quem também abraça a causa — se deixa estuprar todos os dias. Com aquele comentário desprezível sobre nossas pernas ou peitos. Com aquele olhar desrespeitoso que a gente não reclama nem para si mesma. Com aquele tapa que levou do marido mas deixa de lado porque "foi só na hora da raiva". A gente não se importa com esses detalhes porque parecem frívolos: mas são eles que promovem notícias como estas recentes que causaram tanto impacto em quem viu e ouviu.

Abomino e acho horripilante um ser humano dizer que outro ser humano mereça ser violentado: sim, violentado; porque sexo não é obrigação, tamanho de roupa nunca foi convite e a raça humana nunca foi tão perversa. Pancadaria num ambiente que deveria ser chamado verdadeiramente família não se justifica baseada em discussões porque o amor simplesmente sabe ser conversativo, paciente e capaz de estender os braços para o perdão ao invés de levantar a mão para um tapa.

Essas atrocidades acontecem todos os dias, mas passam em branco. Quando as porcentagens aterrorizantes são proclamadas em noticiários, nos escandalizamos e fazemos por, no máximo uma semana, campanhas para acabar com o dilema, na ingênua forma de pensar que é na atitude de um ou dois dias que o caos será amenizado. Mas é só abaixar a poeira e os dias voltarem a seguir como de costume que nós, antigos gigantes acordados, adormecemos outra vez. Os problemas continuam de pé a nos atropelar e esmagar nossa face na vergonha e miséria a que somos submetidos em pequenas coisas que, na nossa ignorância, não fazem a menor diferença — mas, no fundo, contam bastante. O respeito por nós mesmas e pelos outros começa de agora e deve progredir por todos os dias. Não se pode mais esperar por grandes coisas para manifestar nossa condição de ser humano, de ser gente e de merecer uma vida verdadeiramente livre: a luta por isso é diária e se expande com o nutrir de pequenas sementes de gentileza e olhar pueril para o outro que nos dão poderosos frutos na colheita.

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